Todas as jornadas, internas, externas, são, inevitavelmente, exprimidas com veemencia pelos que as transformam em arte. Com um artista da sensibilidade de John Coltrane, não podia ser diferente.
Desde 1957, uma enorme espiritualidade tomou conta de Coltrane, sendo a responsável por acabar com sua dependência química, e levando-o ao auge, ao panteão de grandes nomes do Jazz. Nesse período, distribuiu pérolas revolucionárias do quilate de “Giant Steps” (1960). Mas, em 1964, lhe veio um lampejo: um disco puramente espiritual, uma odisseia por seu interior. Então, se isolou por dias em seu quarto (como brilhantemente relatado no excelente documentário “Chasing Trane”), e apareceu com a obra que se tornaria uma das mais emblemáticas da história. Era “A Love Supreme”, que hoje completa 55 anos.

Reunido com seu lendário quarteto original, de Elvin Jones na bateria, Jimmy Garrison no baixo e McCoy Tyner no piano, as sessões dessa suíte em quatro partes exprimem uma sintonia que, bem, só pode haver explicação divina. Desde o soar do Gongo no primeiro segmento “Acknowledgement”, sentimos que estamos diante de algo especial. O solo introdutório de Coltrane, que tão naturalmente flui para um groove com grandes pitadas afro-cubanas do mestre Elvin Jones, até sermos apresentados ao tema que é força motora do disco. As repetições de “A love supreme, a love supreme” soam como uma oração, um despertar ao mundo espiritual.
“Resolution” surge com o tenor em sua faceta mais cortante, num tema com ecos do Jazz Modal tão popularizado por seu padrinho Miles Davis. Como numa busca por resolução, por um caminho, tem seus momentos mais intensos no incrível solo de McCoy, e, é claro, no sopro avant-garde por essência de Coltrane.
“Pursuance” se inicia com um magnífico solo de bateria, onde Jones esbanja sua habitual habilidade de criar pinturas sonoras, entre seus explosivos tambores e coloridos pratos. Até que um Swing insano e veloz se inicia, num dos momentos mais memoráveis e intensos de toda a carreira de Coltrane, entregando seu fraseado inconfundível e que, ao ouvido dos que estão atentos à mensagem, transformador. Ao final, Garrison nos hipnotiza com toda a tensão de seu solo.

Uma odisseia espiritual não teria fim mais adequado do que uma oração. “Psalm” foi completamente pensada como tal. Sendo cada nota do tenor mágico de Coltrane uma sílaba de um poema de sua autoria (e que consta no encarte do álbum). A catarse toma conta, com os tambores retumbantes de Jones e os acordes soltos do piano fazendo a cama para um dos momentos mais emocionantes e definitivos da história do Jazz, e encerrando essa busca interior de um artista em seu AUGE.
“A Love Supreme” é uma obra que ultrapassa qualquer limite ou barreira musical. Em 33 minutos, moldou boa parte do que seria o Jazz Moderno, com suas experiências Avant-Garde. E, acima de tudo, é transformador. Quaisquer sejam suas convicções, basta uma nota do saxofone de John Coltrane para mudar completamente sua percepção. É uma declaração de seu amor supremo à arte, à vida, e que merece uma audição por qualquer entusiasta de música. Já lhes adianto, não há como sair ileso.
